domingo, 10 de maio de 2009

Veja: Chuteiras que valem ouro

Veja: Chuteiras que valem ouro
O futebol é um negócio rentável não apenas para os clubes e jogadores. Empresários e investidores estão ganhando muito dinheiro com a venda de atletas


Em dezembro de 1962, o escritor e cronista Nelson Rodrigues, o primeiro a traduzir o lirismo do futebol brasileiro, escreveu o seguinte sobre a proposta do Juventus, clube da cidade italiana de Turim, para comprar o craque Amarildo, que brilhara na Copa do Chile, vencida meses antes pela seleção nacional:
"Amigos, o Juventus da Itália reiterou o lance nababesco: 250 milhões (de cruzeiros) por Amarildo. Para um futebol pobre como o nosso e, repito, para um futebol barnabé, a oferta soa como um escândalo: 250 milhões! Aí está uma quantia que muitos só farejam ou apalpam nalgum delírio furioso. Há reis, impérios, cidades, nações que não valem tanto. E esse dinheiro todo por um rapaz, ali, de Vila Isabel, que faz a barba num salão do Boulevard e que apanha o lotação no Ponto de 100 réis."

Nelson Rodrigues se estende, na crônica publicada na revista Manchete, sobre a negativa do Botafogo de vender Amarildo – "Tratou os 250 milhões com o nojo de quem afasta com o lado do pé uma barata seca" – e a penúria dos nossos times, "que boiam num lago de dívidas como vitórias-régias". Era um baita dinheiro – dezesseis vezes o maior prêmio pago pela Loteria Federal no mesmo ano. Quase 47 anos depois, os clubes nacionais continuam paupérrimos, mas, associados a investidores, já não se recusam a vender – nem por um minuto – suas estrelas por quantias nababescas. Muito pelo contrário. O futebol brasileiro tornou-se o grande celeiro que abastece os gramados da Europa e da Ásia. Só nos clubes europeus, há 551 atletas nacionais, o suficiente para formar trinta equipes completas, com sete reservas cada uma. Se um jogador de futebol brasileiro pudesse ser negociado na Bolsa Mercantil de Chicago, seria um investimento dos mais concorridos: a "mercadoria" está rendendo mais que o ouro. A venda de atletas para o exterior vem crescendo há três anos consecutivos e, em 2008, totalizou 1 176 transferências – 46% a mais do que em 2005. Só a transferência de Breno, ex-zagueiro do São Paulo, para o Bayern de Munique rendeu ao grupo investidor um lucro de 2 300% em menos de cinco meses.

Na corrida aos craques nacionais, a pressa de chegar antes do concorrente vem fazendo com que a idade dos contratados caia na mesma proporção com que dispara a cotação dos atletas no mercado: os gêmeos Rafael e Fabio da Silva, ex-Fluminense, foram comprados aos 15 anos pelo Manchester United, da Inglaterra. Philippe Coutinho, de 16 anos, joga no Vasco, mas já pertence ao Internazionale de Milão (que só poderá levá-lo quando ele completar 18 anos). Há ainda o incrível caso de Caio Werneck, "craque-bebê" brasileiro de apenas 10 anos e já selecionado pelo Roma. "Jogador de futebol virou commodity e o Brasil, seu maior exportador", diz o italiano Raffaele Poli, pesquisador do Centro Internacional de Estudos do Esporte, na Suíça.

Um negócio só é bom mesmo quando é bom para os dois lados. Por tal critério, esse de selecionar, treinar e vender para o exterior jovens craques brasileiros é um excelente negócio. Para o jogador, a diferença entre os salários pagos por um clube brasileiro e por um time europeu de porte equivalente quase sempre é de um dígito, ou perto disso. Um atacante de um time médio, de primeira divisão, que ganhe 15 000 reais por mês no Brasil facilmente conseguirá emplacar um salário equivalente a 100 000 reais em um time de igual tamanho na Itália. Diante disso, os pobres clubes nacionais, as vitórias-régias de Nelson Rodrigues, fazem malabarismos para tentar segurar um pouco seus craques – pelo menos até o momento de conseguir vendê-los ao melhor preço. Os dirigentes do Santos, por exemplo, além de pagar salários expressivos a suas estrelas mirins – o promissor Jean Chera, de 14 anos, ganha 18 000 reais mensais, incluindo patrocínios –, esmeram-se em agradar àqueles a quem cabe a palavra final diante de um convite vindo do exterior: os pais dos meninos. Telefonemas simpáticos de integrantes da diretoria e visitas ocasionais para um cafezinho são as formas mais comuns de, digamos, "fidelizar" a família do pequeno jogador. A família do craque Neymar, de 17 anos, é íntima da diretoria do clube. O potencial de valorização do passe de Neymar atrai investidores como abelhas ao mel. Certamente, para a tristeza das arquibancadas da Vila Belmiro mas para a alegria do jogador, da sua família, da diretoria do clube e dos investidores, Neymar logo será vendido por uma fortuna. Quanto? Bem, o grupo Sonda comprou 40% do valor de uma venda futura quando o atleta ainda nem tinha entrado em campo pela primeira vez por 6,5 milhões de reais. Hoje, a multa rescisória do contrato dele com o Santos é de 90,5 milhões.

O sonho de fama e fortuna de milhares de jovens candidatos a craque materializa-se nas peneiras – testes que os grandes clubes fazem para identificar novos talentos. As peneiras são de trama apertada. As organizadas pelo Flamengo fora do Rio de Janeiro atraem 800 meninos a cada vez. Desses, apenas quatro são selecionados para um período de testes. No Santos, segundo Guto Assumpção, diretor de futebol de base do clube, de cada 100 garotos que entram nas categorias de base, apenas dez acabam vestindo a camisa profissionalmente. Outros cinquenta poderão até se tornar profissionais, mas em equipes de segundo ou terceiro escalões. Só três de cada cinquenta jogadores convocados para uma seleção de base chegam a vestir a camisa canarinho da seleção principal.

Se a peneira é apertada, as recompensas são também desproporcionalmente milionárias para quem chega lá. Por essa razão, o garimpo de novos talentos tem se revelado um ótimo negócio. Atraídos pelo baixo custo e pelo potencial de lucro fantástico, investidores dos mais variados setores têm feito suas apostas. É o caso do grupo de supermercados Sonda e da empresa EMS Sigma Pharma. Juntos, eles detêm direitos sobre futuras vendas de mais de uma centena de jogadores. Esse modelo de negócio surgiu quando o passe (título de propriedade de um jogador que, na maioria das vezes, pertencia ao seu clube) foi abolido pela Lei Pelé, em 2001. A partir daí, os times, eternamente endividados, começaram a vender aos interessados porcentuais do valor da venda futura de seus atletas, numa operação similar à divisão de capital entre os acionistas de uma empresa – com a diferença de que, nesse caso, o lucro só aparece quando o jogador é negociado. A Sigma Pharma, que detinha 42,5% dos direitos sobre a venda do ex-atacante do Cruzeiro Guilherme Gusmão, de 20 anos, embolsou em torno de 6 milhões de reais com a ida do atleta para o Dínamo de Kiev. O grupo Sonda tem participação na cota de venda de trinta jogadores profissionais, entre eles o argentino Andrés D’Alessandro, do Internacional, e de mais de setenta jogadores de base. "Nossa expectativa é duplicar o capital investido em até dois anos", diz Thiago Ferro, um dos sócios do grupo. Para não falar de empresas dedicadas exclusivamente ao negócio esportivo – como a Traffic, que, além de ter um plantel de setenta jogadores, acaba de inaugurar uma verdadeira incubadora de talentos.

O assédio de clubes e investidores às chamadas "promessas do futebol" vem criando miniestrelas – jovens sem fama, mas já familiarizados com a pose de um David Beckham e a bajulação que cerca um Ronaldinho Gaúcho. Tome-se o caso de Luiz Henrique Muniz Batista, o Esquerdinha. Aos 16 anos, ele assinou com o Santos seu primeiro contrato como profissional. Dias depois, foi levado a um passeio na Oscar Freire, rua que abriga as lojas mais elegantes de São Paulo. Acompanhado por três empresários, o adolescente – de regata branca e chinelo de dedo – lotou sacolas de chuteiras, camisetas e bermudas de marcas caras. No momento em que a reportagem de VEJA o encontrou, Esquerdinha estava sendo levado para escolher seu próximo presente: um celular novo. O jogador contou que seus novos empresários reservaram um preparador físico para ajudá-lo a desenvolver a musculatura e contrataram um professor para lhe dar aulas de inglês. Como em Santos o idioma é português, está claro o objetivo final dos investidores.

Os brasileiros formam de longe o maior grupo de jogadores estrangeiros na Europa. Em geral, eles chegam lá por meio de uma negociação entre clubes. Mas podem também ser levados diretamente por um dos muitos olheiros que os times estrangeiros mantêm espalhados pelo Brasil. Essa rede de caça-talentos – em geral, constituída de ex-jogadores – acompanha desde os principais campeonatos regionais até as mais obscuras partidas de várzea. O inglês John Calvert-Toulmin, observador do Manchester United na América do Sul, assiste a cerca de cinquenta partidas por mês: "A minha função não é procurar o melhor jogador, mas o jogador que melhor se adapte às necessidades do meu clube".

Ao contrário de barras de ouro, jogadores de futebol podem ter saudade de casa ou detestar o clima do novo país – isso quando não se metem em boates de reputação suspeita, com frequentadoras idem, ou dão chá de sumiço nos treinos para visitar os amigos no Brasil. VEJA acompanhou a rotina de três jogadores que estão vivendo na Europa: Willian Borges da Silva e Guilherme Gusmão, na Ucrânia, e Breno Borges, na Alemanha. Em comum, os três ganham pelo menos dez vezes mais do que recebiam no Brasil, mantêm-se sintonizados nos canais brasileiros de TV a cabo e mostram um notável desinteresse pela cultura local. O atacante Guilherme chegou à Ucrânia há três meses como a mais cara contratação do Dínamo de Kiev. Ele reclama do frio e do fato de que ninguém lá "parece fazer questão alguma" de entendê-lo, ainda que o atleta não fale outra língua. O ex-corintiano Willian, um dos seis brasileiros do Shakhtar, é um dos poucos a estudar um idioma, mas não com vistas à adaptação na Ucrânia. Ele está aprendendo inglês porque não pretende renovar o contrato com o clube de Donestk.

Com pouca idade e, em geral, baixa escolaridade, os jogadores brasileiros raramente tiram proveito pessoal da experiência de viver no exterior. Nesse sentido, ex-jogadores como Leonardo Nascimento de Araújo e Dunga são exceções. Ambos se beneficiaram com os anos passados na Europa. Dunga aprendeu italiano e alemão e se orgulha de ter podido visitar locais históricos fechados ao público (veja o depoimento). Leonardo diz que sempre teve curiosidade de conhecer outras culturas. "Procurei passar apenas dois anos em cada país e me esforcei para aprender a língua e conhecer o modo de vida de cada um deles", diz. Na Itália, pouco antes de abandonar os campos, fez um curso de gestão esportiva. Hoje, aos 39 anos, é diretor técnico do Milan.

Leonardo deixou o Brasil para jogar na Espanha quando tinha 22 anos de idade. Dunga foi para a Itália pouco mais velho: aos 23. Coisas do século passado. Hoje, apesar de a Fifa proibir transferências internacionais de menores de 18 anos, uma série de subterfúgios permite que se drible a regra: uma das formas mais frequentes é a contratação fictícia do pai do atleta para um cargo em uma das empresas patrocinadoras do clube. Dessa maneira, a família se transfere para o exterior e o pai recebe o salário que seria do filho, mas que a lei impede que seja pago. A história do mineiro Caio Werneck, de apenas 10 anos, seria diferente também nesse aspecto. Em julho do ano passado, em Petrópolis, no Rio, o menino participou de um acampamento promovido pelo Roma. Assim como o Milan, o time da capital italiana realiza periodicamente esse tipo de evento com o objetivo oficial de "fortalecer a marca do clube" fora da Itália e a intenção inconfessada de detectar talentos precoces, também fora das fronteiras do seu país. Caio, segundo o técnico Ricardo Perlingiero, responsável pelas categorias de base do Roma, sobressaiu tanto nas partidas disputadas no acampamento que foi chamado para fazer um estágio de uma semana no clube romano. Lá, acabou sendo convidado a ficar. O fato de seu pai, Israel Werneck, ter conexões com o clube italiano ajudou.

A família se mudou para Roma e Caio passou a integrar a categoria de base do clube. "Ele tem um passe muito acima da média", diz Perlingiero. O técnico, que é brasileiro, afirma que nem o menino nem sua família recebem nenhum tipo de remuneração. Israel Werneck revela que colocou o filho numa escola de futebol assim que ele completou 5 anos. Caio é um caso especial. Mas já se contam nos dedos das duas mãos os jogadores brasileiros que brilham no futebol no exterior e às vezes chegam à seleção canarinho sem nunca ter brilhado com a camisa profissional de um clube brasileiro. Ah, sim, quanto a Amarildo, o da crônica de Nelson Rodrigues, ele foi vendido para o Milan e jogou muitos anos na Itália antes de voltar ao Brasil para encerrar a carreira no Vasco.

Lunático
6858km de futebol
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