Fenômeno mesmo é o Adriano - faz tempo que assino a Veja e a Época e não me recordo de um jogador de futebol ter sido tema da últimas página das duas publicações ao mesmo tempo. Semana passsada foi na Época (Didico da Vila Cruzeiro). Agora, é a vez de ele ser tema da coluna de opinião do Roberto Pompeu de Toledo da Veja. De volta ao lar
De volta ao lar
Roberto Pompeu de Toledo
"A favela em que alguém cresceu não tem menor valor, em sua memória afetiva, do que o palácio em que cresceu o príncipe. Em desespero, corre-se para lá"
O jogador Adriano, da seleção brasileira e do Internazionale de Milão, primeiro se notabilizou pelos gols. Aos gols minguantes sucederam farras crescentes. As farras transformaram-no em pivô de escândalos. Nos últimos dias virou, aos 27 anos, personagem de drama. Para quem não acompanhou a história, Adriano, depois do último jogo da seleção, em vez de voltar para a Itália, sumiu. Correu até que teria sido baleado. Ao reaparecer, deu uma entrevista que continha dois pontos fundamentais. O primeiro foi o bombástico anúncio de que iria parar, pelo menos temporariamente, de jogar futebol. "Perdi a alegria de jogar", disse. O segundo, a informação de que passara os dias de sumiço na favela Vila Cruzeiro, na Zona Norte do Rio de Janeiro, onde nasceu e cresceu. Ficou-se sabendo que com frequência ele se refugia na favela. "Estou sempre aqui", diz, num vídeo feito por holandeses na Vila Cruzeiro. "Amo minha favela." Ambos os pontos conduzem a questões mais amplas.
A primeira tem a ver com o futebol mesmo. Não há caso similar, até onde a vista alcança, de jogador que, ainda com anos de carreira pela frente e ganhando uma fortuna, tenha decidido abandonar tudo. Jogador que perde a alegria de jogar é triste como palhaço que não vê mais sentido em fazer graça, artista plástico que não mais se encanta pelas cores ou filósofo para quem especular vira uma chatice. Adriano é um caso especial. Ele hoje nega, mas já admitiu problemas com alcoolismo. Talvez sofra de depressão. Mesmo assim, seu caso é emblemático. Ele sumariza o novo "trato dos viventes", para usar o título do livro do historiador Luiz Felipe de Alencastro sobre o comércio de escravos no Brasil, em que se transformou a indústria do futebol.
Não; não se pode comparar a situação do escravo transplantado da África para uma vida de sofrimento no Brasil com a do jogador exportado para uma vida de riqueza no exterior. Exceto por três fatores – um, que se trata igualmente de comércio em que a mercadoria são pessoas; dois, que na maior parte das vezes envolve gente de pele escura; e três, que para essa gente/mercadoria o lado de lá da linha significa o desterro. Adriano transferiu-se para a Itália aos 19 anos. Foi disparado, sem escala para aclimatação, da Vila Cruzeiro a Milão. À penúria da favela seguiu-se a era das mansões, das mulheres e dos carrões. O preço a pagar foi o de ter desembarcado num mundo de língua, hábitos e referências novas – tanto mais atordoantes para quem tem formação deficiente e estrutura psicológica frágil. Seu caso chama atenção para o lado obscuro do sucesso dos artistas da bola.
A segunda questão suscitada pela entrevista de Adriano, sobre seu refúgio na Vila Cruzeiro, serve como involuntária contribuição a um debate hoje na ordem do dia no Rio – o da expansão das favelas. O governo estadual projeta construir muros para proteger áreas verdes do avanço das construções. A moda do muro, que viceja da Cisjordânia à fronteira EUA-México, chega ao morro carioca como símbolo de uma rendição: desiste-se da urbanização, da fiscalização e outras providências que exigem seriedade de propósitos e continuidade administrativa em favor de um golpe de tijolo e cal. A contribuição de Adriano ao debate é apontar uma razão pouco citada para a expansão das favelas: o fato de muita gente gostar de morar nelas. De o apego à favela, numa multidão de brasileiros, ser um traço cultural.
Aos que só observam a favela de longe, como a um planeta distante, parece inconcebível que alguém possa preferir a Vila Cruzeiro a Milão. Adriano, que estaria construindo uma casa na favela, é a mais ilustre evidência em contrário. Ele é fruto daquele ambiente meio aldeia e meio cidade, meio roça e meio bairro de subúrbio, em que o costume é morar todo mundo grudado, partilhar fortemente sua vida, andar pelas vielas de chinelos e bermudas, aceitar o convívio com o tráfico como no asfalto se aceita conviver com o delinquente de colarinho-branco – e não troca isso "por nada e por ninguém", como diz no filme dos holandeses. Os verdadeiros paraísos são os paraísos perdidos, escreveu Marcel Proust. O paraíso que Adriano perdeu, ao se lançar mundo afora, é a Vila Cruzeiro. A favela em que alguém cresceu não tem menor valor, em sua memória afetiva, do que o palácio em que cresceu o príncipe. É o lugar em que sentiu os primeiros cheiros e ouviu os primeiros sons. Na hora em que a mente se perturba, corre-se para lá, na busca de segurança e de aconchego, como quem corre, em desespero, em busca da pátria.
Lunático
6858km de futebol
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